Sabe o que é terapia comunitária? Já tem no SUS; veja detalhes
Com informações do Paraibaonline
“Tô balançando, mas não vou cair, mas não vou cair, mas não vou cair”, entoam 14 pessoas abraçadas, a maioria idosos. São 10h de uma segunda-feira e está começando mais uma roda de terapia comunitária, iniciativa que acontece no SUS e que tem ajudado os participantes a lidar com o sofrimento mental.
Criado pelo psiquiatra Adalberto Barreto, professor da Universidade Federal do Ceará, na década de 1980, o modelo da Terapia Comunitária Integrativa (TCI) é adotado hoje em mais de 40 países e tem crescido na rede pública de saúde, onde está incluído desde 2017 dentro das Pics (Práticas Integrativas e Complementares de Saúde).
Na capital paulista, o número de rodas disparou depois da pandemia. Saltaram de 298, em 2021, para 15.346, no ano passado. Nesse período, mais de 118 mil pessoas participaram dessas práticas nas 116 unidades de saúde que as ofertam, segundo a Secretaria Municipal da Saúde.
No âmbito federal, o número de participantes mais do que dobrou nos últimos anos, segundo o Ministério da Saúde. Passou de 40,2 mil em 2022 para quase 91 mil, em 2023.
O treinamento de profissionais da atenção primária, combinando com iniciativas que envolvam a comunidade, tem sido defendido por especialistas como o psiquiatra Shekhar Saxena, professor de saúde global de Harvard e ex-diretor de saúde mental da OMS (Organização Mundial de Saúde), como um caminho para aumentar a oferta de tratamento de transtornos mentais, como depressão e ansiedade.
Segundo o ministério, a literatura científica demonstra que a TCI proporciona impactos positivos na saúde mental, como o autocuidado, autonomia, confiança, coragem e autoconhecimento.
A Folha participou de uma roda no último 9, no Cecco (Centro de Convivência e Cooperativa) da Vila Maria/Vila Guilherme, zona norte de São Paulo. A prática começa com cada participante relatando o que gostaria de comemorar naquele momento.
A aposentada Kiki, 75, conta que naquele dia almoçaria com a filha, após um longo tempo de afastamento. Maria José Lima, 56, afirma estar muito feliz pelo aniversário de dois anos da neta, que tinha acontecido no fim de semana. A menina tem uma doença rara e muitos amigos se afastaram após o nascimento dela. A mãe temia que ninguém aparecesse na festa. “O salão estava cheio”, diz a avó, sorrindo.
O passo seguinte da roda é abrir para os relatos sobre os sofrimentos emocionais que afetam cada um. Para descontrair, o psicólogo Marcel Marigo toca antes no violão o refrão “a terapia vem aí, oh-lêo-lêo-lá, a terapia vem aí, oh-lêo-lêo-lá”. A enfermeira Jussara Otaviano o acompanha com um ukulele. Os participantes batem palmas.
Edgar, 74, diz que está triste e angustiado pelo fato de o irmão estar internado em estado grave. Maria Neide, 65, relata a dor que sente pela perda da amiga por suicídio.
“É muito triste, a gente fica sem chão.” Kiki lamenta a solidão e a falta de amizades. “Nunca consegui fazer amizade com ninguém. Desde criança foi assim, as pessoas se aproximam e depois se afastam de mim.”
Ao fim dos relatos, o psicólogo pergunta quem já passou por situações parecidas e o que fez para resolvê-las. Após mais uma rodada de conversas, o grupo elege qual o caso que merece ser discutido mais amplamente.
O drama de Kiki é o mais votado. Alguns participantes compartilham dificuldades semelhantes e as táticas que adotaram para superá-las. Outros fazem perguntas diretamente a ela, sempre orientados a não julgá-la ou criticá-la.
Kiki responde um a um e, aos poucos, vai se abrindo. Diz que costuma agradar as pessoas que gostaria de ter como amigas (“chamo para minha casa, faço café, bolo”) e que fica triste e magoada quando elas não correspondem às suas expectativas. Ao final, é abraçada pelas colegas do grupo e se emociona. A roda terapêutica termina uma hora depois com lanche, suco e café para todos.
Segundo Marigo, a lógica horizontal da roda, com cada um compartilhando experiências e elas servindo de caminho para o outro, é a chave para a criação de vínculos entre os participantes.
“O terapeuta apenas organiza a roda. O grupo fala e a pessoa decide o que tem a ver ou não com ela. É o indivíduo que decide os rumos da vida dele. Nada é imposto. Isso estimula a autonomia e o senso de comunidade”, diz ele.
O terapeuta apenas organiza a roda. O grupo fala e a pessoa decide o que tem a ver ou não com ela. É o indivíduo que decide os rumos da vida dele. Nada é imposto. Isso estimula a autonomia e o senso de comunidade
psicólogo
Ele afirma que pessoas que já estão em tratamento psiquiátrico ou psicológicos também podem participar das rodas terapêuticas e também se beneficiam bastante. “Uma coisa não exclui a outra.”
De acordo com a enfermeira Jussara, os participantes relatam que saem mais aliviados desses encontros por verbalizar o que está causando sofrimento ou por entender que não estão sozinhos. “Mesmo os que não falam nada [na roda], depois, no cafezinho, conversam e aí começa a se formar redes de apoio.”
Há dois anos, Jussara foi vencedora de um prêmio instituído pela Rainha Silvia da Suécia por seu trabalho de expandir o uso da terapia comunitária integrativa no SUS. Hoje ela supervisiona rodas nos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e nos consultórios de ruas na região central, entre outros.
Para ela, essas redes de apoio ganharam mais importância após a pandemia. “As pessoas se sentiram muito sozinhas e, agora, cada vez mais, estão conseguindo enxergar que precisam das outras.”
Segundo o médico Adalberto Kiochi Aguemi, diretor da divisão de saúde integrativa da gestão municipal, além de participar das rodas terapêuticas, muitas pessoas aderem a outras atividades oferecidas nesses espaços, como ioga, dança circular e artesanato.
Ele afirma que observa um impacto positivo das atividades na redução do uso de medicamentos, como antidepressivos e ansiolíticos. Os dados, porém, ainda estão sendo mensurados em estudos.
“As pessoas têm sofrimentos que, se não verbalizados, crescem e tomam uma dimensão muito maior. A gente acaba medicalizando muitos os sentimentos. Em uma fase inicial, esse sentimento de tristeza precisa ser acolhido e não medicalizado.”
As pessoas têm sofrimentos que, se não verbalizados, crescem e tomam uma dimensão muito maior. A gente acaba medicalizando muitos os sentimentos. Em uma fase inicial, esse sentimento de tristeza precisa ser acolhido e não medicalizado
médico e diretor da divisão de saúde integrativa da gestão municipal
A enfermeira Ione de Carvalho Gama, gestora do Cecco da Vila Maria/VilaGuilherme, diz que, quando há necessidade, a pessoa é encaminhada para um acompanhamento psicológico ou psiquiátrico. Em uma ocasião, por exemplo, uma participante chegou na roda já em surto psicótico.
“A gente acionou a rede de saúde e conseguiu um psiquiatra na hora. Aqui não é um lugar de procedimentos, mas é um lugar em que a gente cuida para que as pessoas também usufruam do que a rede oferece.”
O médico Aguemi reforça o papel das rodas terapêuticas na promoção da saúde mental. “É uma tecnologia leve, simples, barata, mas muito potente e que pode ser multiplicada. Ela resgata os saberes ancestrais, a música, o movimento.”
Segundo ele, essa promoção da saúde mental também atinge os profissionais de saúde, seja na participação das práticas integrativas seja na realização de cursos de TCI, que são voltados para eles, inclusive os agentes comunitários de saúde. O número de profissionais treinados para conduzir as rodas na capital paulista passou de 90, em 2022, para cem neste ano.
SERVIÇO
Clique aqui e veja a lista completa das modalidades de Pics (Práticas Integrativas e Complementares em Saúde) disponíveis na capital paulista, incluindo a Terapia Comunitária Integrativa (TCI).
Esse projeto é uma parceria com a Umane, associação que apoia iniciativas no âmbito da saúde pública.
*CLÁUDIA COLLUCCI/Folhapress